Vozes da Agricultura Ecológica

Capítulo 1 - Vidas Longas Breves Relatos

Comecei as entrevistas que deram origem aos relatos deste livro por puro gosto. Gosto de ouvir, ver, contar histórias. Sempre ouço sobre as vidas dos membros das famílias de agricultores ecologistas, com as quais convivo, narrativas muito interessantes. Na verdade, sempre vejo na vida das pessoas, em geral, excelentes histórias. A partir deste gosto, comecei as conversas que deram origem aos escritos que correspondem aos próximos 19 capítulos deste livro. Escritos breves, muito aquém do que ouvi e mais aquém ainda do vivido por meus interlocutores. O limite foi a capacidade do autor de recontar o que ouviu, com verdade e alguma poesia, aliada ao desejo de que fosse de fácil leitura.

Também tenho minha história. Ouvindo e escrevendo às dos outros, não posso deixar de relacioná-las com à que vivi no campo profissional. Mergulho no tempo e recordo-me de que estava ainda estudando Agronomia na Universidade Federal de Viçosa (UFV), quando me interessei pela agricultura alternativa. Era assim que chamávamos essa visão de agricultura que incorporava, em suas análises e tomadas de decisões, variáveis de cunho socioambiental, buscando ir além do foco exclusivo em maximizar a produção. É dessa época uma definição muito comum, que dizia ser a agricultura alternativa socialmente justa, ecologicamente equilibrada, economicamente viável e culturalmente apropriada. Sempre gostei de adicionar agronomicamente inteligente, correndo o
risco de parecer arrogante.

Naquele tempo em que estava na universidade, de 1983 a 1987, éramos 210 novos estudantes de Agronomia por ano. Mais de mil estudantes de Agronomia no campus, somando os cinco anos que, em média, durava o curso. No nosso “grupo de agricultura alternativa” nunca fomos mais que 20. Esse número dá uma dimensão do interesse, entre os estudantes, dessa perspectiva.

Li muitos livros naquela época, tentando buscar informações para além das oferecidas nas aulas. Três deles definitivos no que vejo e interpreto em minha prática profissional.

Um é Manejo Ecológico do Solo, da Professora Ana Maria Primavesi. Em dado momento, creio que em 1985, ela foi convidada pelo Centro Acadêmico de Agronomia a proferir uma palestra sobre solos na UFV. O local escolhido foi o Centro de Vivências. Na época, era o espaço que reunia o maior número de pessoas no campus. Muitos anos depois, uma amiga, Irene Cardoso, à época presidenta do Centro Acadêmico, contou-me que a universidade só permitiu a palestra com a condição de que quatro professores do Departamento de Solos acompanhassem a professora Primavesi à mesa, como forma de tutelar as informações que seriam por ela repassadas. O fato é que, como estudante, simpatizei com aquela senhora, com os ensinamentos que trazia e a tranquilidade com que respondia às perguntas que lhe eram feitas, algumas em tom quase agressivo. No dia seguinte, comprei e comecei a ler o Manejo Ecológico do Solo. Sigo considerando-o o melhor livro de Agronomia que conheço.

Outro livro marcante no que sei e sou foi Extensão ou Comunicação, de Paulo Freire. Considero um privilégio o fato de Paulo Freire ter escrito um livro para nós, profissionais das Ciências Agrárias, em particular para aqueles que têm um trabalho que exige diálogo constante com as famílias agricultoras. E é ao diálogo que esse livro nos convida, apurando nossa sensibilidade em reconhecer o saber e a sabedoria que pode emergir de conversas com quem, por alguma razão, não teve acesso ao ensino formal. Mesmo tendo quase cinco décadas, e hoje vivermos em um mundo rural diferente, relativamente mais letrado em comparação à época em que Paulo Freire o escreveu, os preceitos desse livro não perderam vigência. Consideração pelas diferentes formas de acumular conhecimento é bom e todos gostamos. E ainda nos ensina a cultivar esse respeito em nós e a vivenciá-lo em nosso cotidiano profissional.

O terceiro livro a que me referi como fundamental é Plantas Doentes pelo Uso de Agrotóxicos – A Teoria da Trofobiose, do pesquisador francês Francis Chaboussou. Conheci esse livro começando o último semestre na faculdade. Presente da Ana, então namorada, hoje esposa e mão dos meus quatro filhos. Paixão à primeira leitura. A visão que Chaboussou traz sobre a relação entre as chamadas pragas e enfermidades e as plantas me seduziu. Na obra, encontrei uma tese que considerei e considero explicar muito melhor essa relação do que à que aprendi em disciplinas que tratavam desse assunto, como fitopatologia ou entomologia. Dos três livros que citei, julgo ser esse o menos lido e compreendido. E o que mais marcou minha vida profissional. Mesmo entre os adeptos da Agricultura Ecológica, a ideia que predomina é de que a presença das chamadas pragas ou enfermidades são reguladas pela existência ou não de substâncias antagônicas a esses seres nos vegetais. Os ditos desequilíbrios biológicos, provocando o desaparecimento de um inimigo natural, também poderiam favorecer um ataque de insetos ou enfermidades. Chaboussou é enfático em refutar essas ideias e atribui a desequilíbrios fisiológicos nas plantas a suscetibilidade de serem afetadas por insetos ou doenças.

Segundo ele, será a ausência de substâncias nutritivas ao inseto, em uma planta, que o impedirá de se converter em praga. O mesmo ocorre se nos referirmos a bactérias, fungos, ácaros ou nematoides. Em outras palavras, é o desequilíbrio fisiológico que aumenta a disponibilidade de alimentos aos insetos ou patógenos e que irá tornar a planta suscetível a sofrer um eventual dano. A compreensão da tese exposta na Teoria da Trofobiose nos faz entrar em sintonia com a harmonia da vida presente na relação entre insetos ou patógenos e as plantas. A partir dessa teoria, não vemos nesses seres um inimigo que, de maneira arbitrária, quer dizimar uma população vegetal, mas sim, seres que pressionam a planta no sentido da sua evolução permanente.

Claro que a lista de livros poderia seguir crescendo. Mas, daquela época, vou ainda citar Agropecuária sem Veneno, principalmente a primeira parte do Agrônomo Sebastião Pinheiro e o Ponto de Mutação, do físico Fritjof Capra, como livros que influenciaram, de forma definitiva, minha formação e opção profissional.

A opção profissional foi trabalhar com a tal da agricultura alternativa. Não sabia bem como e a primeira tentativa foi a Emater do Paraná, onde passei num concurso e ingressei no segundo semestre de 1987, logo após a graduação. Na época, a Secretaria Estadual de Agricultura do Paraná, de caráter progressista, propagandeava sua opção pela Agricultura Alternativa. Mas o fato é que, quando ingressei na Emater, esse quadro alterou-se devido a troca de Governo em 1987 e perdi a oportunidade. Com essa mudança política e de enfoque, pedi demissão e, já casado, fui, no dia 01 de abril de 1988, para um estágio de um mês no chamado Projeto Vacaria, no município de Ipê, Rio Grande do Sul. O objetivo era conhecer a agrônoma Maria José Guazzelli, tradutora do livro sobre a Trofobiose, que citei alguns parágrafos acima. Fomos para ficar um mês, já se foram mais de 30 anos. O Projeto Vacaria mudou de nome para Centro de Agricultura Ecológica (CAE Ipê) e, posteriormente, para Centro Ecológico.

Posso afirmar que nesses 30 anos o crescimento dos adeptos a essas escolas com uma visão alternativa da produção agropecuária foi significativo. As histórias contadas nas páginas seguintes atestam esse crescimento. O termo alternativo deixou de ser usado e outros adjetivos foram sendo conhecidos, cunhados ou resgatados. Agricultura Orgânica, Agricultura Biológica, Agricultura Natural, Agricultura Ecológica, Agricultura Regenerativa, Agricultura Biodinâmica, Permacultura e Agroecologia são alguns exemplos. Manejo Agroflorestal é um termo que também vem sendo muito utilizado.

Mas, como eu dizia, nos últimos 30 anos o crescimento no número daqueles que percebem a agricultura por este viés, já denominado alternativo, aumentou consideravelmente. Percebo isso no cotidiano, nos comentários da imprensa, nas redes sociais, nas feiras que frequento, nos convites que recebo para falar do tema, que surgem de diferentes lugares, pessoas e setores. Os dados também demonstram esse crescimento. O mercado era inexistente. O primeiro número que lembro surgiu em 1994 e falava de um mercado mundial de U$ 4 bilhões de dólares. Hoje passou da casa dos U$ 100 bilhões. E esses dados de mercado estão longe de serem representativos de toda a diversidade que gira ao redor da produção ecológica, incluindo suas denominações correlatas.

Boa parte da história que levou a essa expansão eu vi acontecer, parte dela participei e, ainda que modestamente, colaborei na construção. Sempre muito bem acompanhado.

Sim, foram 30 anos muito bem acompanhados. Ao longo dessas décadas, um dos meus privilégios foi trabalhar junto a famílias agricultoras. De todas as partes, dentro e fora do país. Visitando áreas rurais mundo a fora, mas, principalmente, na América Latina. Conheci pessoas, famílias e comunidades de gente legal, comprometidas e éticas em seus comportamentos.

Essa oportunidade fez surgir e consolidar em mim a percepção de que este mundo é um lugar bonito e de gente bacana.

Sim, foram 30 anos muito bem acompanhados. Ao longo dessas décadas, um dos meus privilégios foi trabalhar junto a famílias agricultoras. De todas as partes, dentro e fora do país. Visitando áreas rurais mundo a fora, mas, principalmente, na América Latina. Conheci pessoas, famílias e comunidades de gente legal, comprometidas e éticas em seus comportamentos.

Mas o espaço no qual mais trabalhei, onde de fato tive a oportunidade marcante de participar da construção de uma utopia, como já enfatizei, muito bem acompanhado, foi no Rio Grande do Sul. Mais, especificamente, nos municípios de Ipê e Antônio Prado, Serra Gaúcha e na Região de Torres, Litoral Norte. Vivi de 1988 a 1999 em Ipê e, desde 1999, resido em Torres. Sempre tendo como eixo principal do meu trabalho atividades do Centro Ecológico junto a famílias agricultoras, dando nossa parcela de contribuição à construção de um mundo justo e limpo.

A utopia a que me referi ainda está longe de se massificar. Mas, em 30 anos, temos já um grupo importante de famílias que, trabalhando com Agricultura Ecológica, buscam uma maneira mais nobre de se relacionar com a natureza e com o outro. Para isso, procuram formas de se organizar em grupos, associações ou cooperativas, que também as ajudam a comercializar o que produzem. Essa comercialização se dá, na medida em que a realidade permite e os envolvidos desejem, nos espaços locais, próximos, com a menor intermediação possível. Na outra ponta, consumidores e comerciantes que, também, desde seus espaços e perspectivas, buscam contribuir, via comércio e consumo, com a preservação da vida e com modos de vida harmoniosos entre os seres humanos e, destes, com a natureza. Todo esse povo organizando-se de maneira horizontal em Redes Locais de Produção e Consumo de Produtos Ecológicos. E essas, por sua vez, articulando-se em outras redes, geograficamente mais abrangentes, de caráter mais amplo, para debater e propor políticas públicas ou intercâmbios de conhecimentos e produtos. Outras vezes, organizando-se ao redor de temáticas específicas, como a certificação, o açaí juçara da Mata Atlântica ou a educação ambiental.

Como já mencionei, nas últimas semanas fui a campo conversar com algumas famílias agricultoras. Conversa tranquila sobre suas opções e práticas com Agricultura Ecológica. Sobre presente, passado e futuro, conversa sem rumo ou maiores pretensões, mas com o intuito de relembrar ocorridos e deixar registrado algo de suas histórias. Aqui, reuni dezenove delas, contadas a partir desses diálogos. Breves causos de vidas longas, por vezes, lutas árduas. A pretensão é registrar e compartilhar um pouco dessas trajetórias. No decorrer dos textos, busquei deixar registrados alguns dos conceitos ou princípios que nortearam a ação do Centro Ecológico ao longo dessas décadas. E a própria história do trabalho do Centro Ecológico, em linhas gerais, estará contada à medida em que foi construída junto com a dos personagens que aqui têm parte de suas vidas relatadas. Eu gostei muito de estar com eles, elas, de reviver acontecidos.

Não houve muito critério na escolha das famílias além da intuição, já que, se 19 é um número muito maior do que éramos em 1988, é muito, mas muito menor do que somos hoje. 

Enfim, se é verdade que nós, os defensores de uma agricultura mais ecológica, ainda não somos maioria, é verdade também, que já somos milhares. E nos juntamos com outros milhares, com suas construções específicas, mas ao redor do mesmo desiderato de um mundo mais saudável em quaisquer das dimensões que essa palavra possa ser usada. 

Não pretendi relatar toda a trajetória dos atores que aqui têm suas histórias contadas. Faço-me um pouco Sherazade e deixo a melhor parte das suas vidas sem fim para um próximo momento. Apenas porque sinto que o melhor ainda está por vir.

É, acho que virei um velho contador de histórias.

Como também me atrevo a fazer poesia, afinal de poeta todos temos um pouco, optei por introduzir este poema antes dos relatos, quase um contrabando literário. Quem sabe alguém gosta?

Vida duplicada

A vida explode na chácara:
Tem milho com dois sabugos
Ovos claros de duas gemas
Terra com cheiro de mato
Couve manteiga, tomate
Comida longa no prato!
No rio fresco, peixe limpo
Tem doce de pera ou goiaba
Mamão com coco, figada
Tem suco de tangerina
Tem lima da casca fina
Tem todo tipo de fruta!
Cabra, vaca e porca prenha
Vó e sua receita de bolo
Tem biscoito de araruta
Leite branco com gordura
Tem mesa posta bem cedo
Aipim cozido e melado.
Tem planta forte, sadia
Terreno bem cultivado
Limão feito limonada.
Às seis tem Ave Maria
Oração que silencia
Tristeza e até amargura!
Entardecer bem maduro
Manhã colhida no pé
Tem brote de pensar puro
Tem gratidão adubada
Tem cerca de amor seguro
Sorriso sabor café!
Até problema empanado
Bem assado e digerido.
Pensamento reciclado
Tem passado colorido
E futuro armazenado.
Na campina de saudade
O ausente amor tão profundo.
Tem plantação de piedade
Para quem sofre no mundo!
Na fogueira das lembranças
Papo com antepassado…
Tem afeto perfumado
Rosas expondo carinho
Noite de amor estrelado
Tem o nunca estar sozinho.
Mesmo a dor quando aparece
É amassada feito trigo
Logo em pão transmutada.
É assim viver na chácara,
Nem o sofrer tem guarida,
Onde a mágica da vida,
É no amor multiplicada!

 

Laércio Meirelles, 18/10/2017

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